segunda-feira, janeiro 22, 2007

** Gastar anos assim

É um desperdício, anos gastos assim. O verde da relva, o jardim à beira-rio, o autocarro que chega e nos leva, amanha outra tarde igual. É um desperdício, facilmente se chega a essa conclusão. Recordo o mar gelado, a praia imensa, os traços na areia, as promessas no ar. O que assusta é a capacidade de alternar ódio e indiferença e amor. As escadas de madeira, fotografias a dois desta vez. à saída do cinema, a tua mão na minha, um filme qualquer. Tu chegas e descalças os sapatos e adormeces ao meu lado sem despir a roupa. A casa em silêncio, fazemos amor no chão da sala e trocamos palavras que sabemos de cor. É um desperdício, anos gastos assim, erros mesquinhos e decisões apressadas. A verdade é que não dei conta do momento em que me perdi, em que errei o caminho de volta, em que esqueci o mais importante. repito quase em silêncio que é um desperdício. É um desperdício gastar anos assim.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

** Luísa

Foi então que percebi, foi só naquela tarde que senti que tinhas partido, a caneta suspensa sobre a letra, a palavra a meio caminho do fim, o teu nome por terminar, Luísa. E tudo o que calei rebentou naquele momento, numa fracção de segundo, num gesto suspenso, Luísa. Claro que lembro o inferno que foi a tua despedida, a confusão que criaste com a decisão de partir quase sem avisar, de alguma forma suprimi tudo, observei de longe, espectador distante e sereno do teu adeus. E dias depois, semanas até, continuei sentado na plateia do teatro que foi o teu mundo, em silêncio á espera que de alguma forma tudo não passa-se de um intervalo prolongado. Até aquele momento, e a ilusão desfez-se nos riscos do teu nome, Luísa. Só então senti a ausência, tão real, tão cruel quanto foi o teu fim. Cartas que escrevo em delírio, em demente vontade, em egoísta certeza de que enquanto existires em palavras não vais poder partir. A morte é um inesperado sinal de pontuação no texto que sempre escrevi. fecho os olhos, recordo mais uma vez, porque não te vou deixar morrer, porque nunca te vou deixar morrer em mim, Luísa.

terça-feira, janeiro 16, 2007

** Quando quiseres

Gostava que olhasses desse lado do quarto, desse lado da tua vida, e como se as certezas emprestadas fossem suficientes, respondesses, desta vez com palavras, perceptíveis se possível, ao que te pergunto há semanas. Gostava de eliminar os rodeios, as respostas com pontos de interrogação, uma resposta deve ter ponto final a fechar de forma definitiva a ideia. Gostava que a coragem não fosse só uma palavra, daquelas que usas nos teus discursos eloquentes, gostava que tivesses coragem para variar, só desta vez. Conto em silêncio os dias, sei ao que vens, estou mais do que pronta. E quando feitas as contas, cadernos fechados, despojos vendidos, quando sem remorsos nem saudade se der por concluída a operação a que te propuseste, últimas palavras em tom de despedida apressada, Quando finalmente saíres, a casa em silêncio, tudo o que fomos esquecido, as molduras vazias, um copo de vinho, um livro qualquer, a televisão desligada, podes levar a televisão se não te causar transtorno. Quando finalmente sentir que já não existes, sei que não vou notar a tua falta.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

** Por dizer

Bem vez que não quero dizer isto, e se o faço, é porque não sei contornar a questão. Há coisas que enquanto não são ditas nos fazem companhia pela noite dentro, e conversam sem parar, e nos acordam abruptamente sempre que fechamos os olhos, cuidando que finalmente foi possível conviver com o medo e amestrar as feras de circo que habitam todas as almas inquietas. Há coisas que enquanto não são ditas nos matam devagar e por prazer. Bem vez que não quero dizer isto, e se o faço é porque preciso que adormeças em silêncio e sozinho esta noite, é porque não te posso perder.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

** Animais

Anda hoje, ou amanhã. Matas a fome e a vontade que adormeces com ternura faz meses. Animais que se perseguem e se encontram e se desfazem em lutas de corpos conhecidos. O sabor da tua pele, desespero e raiva. O pudor que despimos, que rasgamos, que deixamos a um canto. Matas a sede e o desejo que escondes em extravagantes mentiras faz anos. Animais que se procuram e se devoram sem coerência ou moderação. Nem carinho, nem palavras, nem amor, Ímpeto irracional e vontades descontroladas e lágrimas que sabemos de cor e provamos mais uma vez, anda hoje, ou amanhã.

terça-feira, janeiro 09, 2007

** Confiança

Caminho sem pressa nem cuidado, nada assusta, não olho para baixo, nunca senti o perigo a meio passo da queda. De uma forma ou de outra estás onde é preciso, a tua mão na minha no último instante, ainda estou aqui. De uma forma ou de outra, mais uma vez, não vais desaparecer agora, não vou cair agora. De uma forma ou de outra, não vou... onde estás?

sexta-feira, janeiro 05, 2007

** Cartas

Encontrei ontem cartas tuas, papel amarelo e seco. Cartas, em volta um envelope, selo e carimbo ao canto. Tinta, e frases com riscos por cima, e sinais no meio de palavras a que faltam letras. Encontrei ontem cartas tuas, daquelas que demoram dias a chegar contando que não se perdem pelo caminho. Soube bem agarrar no papel, sentir o cheiro, ler o que escreveste à tantos anos, pensar nas respostas, no que esperei, no que não esqueci. Encontrei ontem cartas tuas, num livro antigo que comprei e guardei sem oferecer. Foi bom relembrar o que fomos, o que deixamos, as promessas que fizemos e não cumprimos. Marquei o teu número, queria agradecer os sorrisos que as tuas palavras antigas desenharam em mim, não deixei o telefone tocar, procurei um caderno, arranquei uma folha, mereces receber esta carta.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

** Incoerência

É isto que assusta. Tempo, vida que corre perante o impávido contemplar do que se deseja. É isto que assusta. Cansaço, de olhos fechados cansaço que se entranha como a humidade no inverno. Os meus gestos, o silêncio, as vontades sem nome que se escondem em esquinas de movimentos iguais, a exaustão do presente. Sei o que quero, o que não quero, o que tanto faz, planos traçados com precisão e detalhe. É isto que assusta, a incoerência que se insinua por vezes, a mão que treme ao escrever a vontade, a diferença entre o projecto e o resultado final.

terça-feira, janeiro 02, 2007

** O que se passa?

Não és só tu, também tenho medo às vezes. Não és só tu, também estou inseguro às vezes. Os riscos controlados são mais simples, mais fáceis, menos perigosos, nunca me deram prazer. O tempo passa em esperas, em compassos de incerteza, enquanto te olho com um sorriso, enquanto saboreio o nosso silêncio, enquanto não chega o inevitável.

- O que se passa?

- Nada, tudo, o resto que fica pelo meio. Há coisas que calamos porque já foram ditas, porque não queremos desperdiçar frases, porque é imperativo não banalizar o especial.

- Gosto de ti. - Mesmo sem palavras, deves conseguir ler em mim, nos meus silêncios, nas minhas respostas evasivas.

- O que se passa? - Nada.

- O que se passa? - Gosto de ti.