quinta-feira, setembro 08, 2022

** Quando o meu pai morreu

Quando o meu pai morreu, morreu também em mim a ilusão de imortalidade. Até aquele momento a verdade da morte diluía-se no dia a dia, sem condicionar qualquer visão do meu mundo. Era uma ilusão saborosa, como quem procrastina algo que não é real enquanto não chega.

Quando o meu pai morreu, não me magoou nenhuma memória triste, nenhum desencontro ou opinião divergente do passado, nenhum arrependimento. O que me magoou foram as memórias boas, a retrospectiva dos proverbiais momentos banais em que fomos felizes sem saber. Entendi que tendemos sempre a sentir-nos eternos, a diluir os dias na certeza de tantos outros iguais que estão por vir, a saber quem amamos como garantido. Gostava de ter entendido os momentos especiais que vivemos juntos como tal, de os ter reconhecido como memórias futuras em lugar de cotidiano. É certo que uma criança excitada por conseguir pedalar sozinha, ganhar pela primeira vez um jogo de damas, fazer uma corrida num rio de água gelada ou conduzir um carro velho numa estrada de terra batida não poderia ler na altura outro significado. A retrospectiva, no entanto, permitiu agora entender o que esses momentos significaram, todos eles, das grandes conquistas às triviais conversas de fim de tarde na praia, todos fazem parte de uma história breve e terminada.

Quando o meu pai morreu, pensei na minha meia vida que passou, e nos anos que viverei sem ele. Pensei que gostava de ver mais que meia vida dos meus filhos, mas que inevitavelmente, haverá anos da vida de quem amamos aos quais não vamos assistir.

Quando o meu pai morreu, nasceu em mim uma certeza, embora não de imediato, a ideia foi crescendo aos poucos. Sinto cada vez mais que conhecendo o nosso início e fim o que realmente importa é o resto. É garantir que nenhum momento banal passa por nós em vão. Que não diluímos nada na ilusão de um amanhã igual.

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