terça-feira, junho 19, 2007

** O Tira-nódoas

Nunca tive medo de nada, nunca tive medo de quase nada, e quando tinha, saboreava o medo como limonadas em dias quentes. Era sempre o primeiro a saltar da rocha mais alta para o rio esverdeado, com vontade de voltar a sentir a vaga de frio que percorre as costas e o tremor que assalta imprevisto o corpo ao espreitar o precipício. Tinha medo de coisas normais. Tinha medo de cair, mas andava de bicicleta como louco por ruelas e escadas. Tinha medo que os pássaros fugissem da gaiola de hamster que estava pendurada no quintal, sem roda claro está, que os bichos alados não se prestam à tarefa de fazer girar rodas de qualquer sorte, mas abria muitas vezes a grade só porque sim. Tinha medo de que me apanhassem a roubar romãs do quintal alheio mas era o primeiro a trepar os telhados. Tantas vezes pensei voltar para trás, desistir do que me propunha alcançar, esperar pela melhor altura, calar o que queria dizer, e outras tantas vezes fiz tudo isso, sem planear, porque sim, porque nunca tive medo de nada, nunca tive medo de quase nada. E no entanto, agora, quando sinto nos teus beijos o travo a despedida, quando com cuidado fechas a porta da rua, e o silêncio ocupa o teu lugar na parte da cama que usaste, quando sem avisar vais embora, não consigo deixar de ter medo, não consigo deixar de quase ter medo, que por alguma razão insondável decidas não voltar amanhã.

2 comentários:

Luís Carlos Martins disse...

Todos nós somos constituídos por uma inebriada sede de alcançar futuramente tudo aquilo a que nos propomos. No entanto, e apesar de todo o medo (ou quase medo) que sentimos, enfrentamo-lo mesmo "como limonadas em dias quentes". É aí que saltamos da "rocha mais alta", roubamos "romãs do quintal alheio" ou mesmo abrimos "a gaiola do pássaros" sempre veementemente esperando que não fujam. Porém, o verdadeiro medo está em enfrentar o nosso próprio coração ou aquilo que o personifica fisicamente com o receio da despedida. Mas mesmo assim, creio que ele faz parte da vitória que é conseguir o que tanto queremos... porque só assim lhe damos valor e tudo faz muito mais sentido.

Muito bem Sr. Joel! Adorei!

Um abraço

Luís Carlos

Anónimo disse...

Quase esperei que falasses de um quase medo de que ela voltasse..